segunda-feira, 27 de abril de 2020

INTRODUÇÃO AO LIVRO DA SABEDORIA ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO


 O livro da Sabedoria, cronologicamente, é o último livro do Antigo Testamento e atua como ponte para o Novo Testamento; constitui  uma etapa  importante dentro dos livros da Escritura. O caminho que  leva ao nosso texto pode ser resumido "brevissimamente" assim:

a sabedoria de Israel se desenvolve a partir da época  Salomônica  e encontra a sua primeira expressão no livro dos Provérbios: aparece como a experiência da vida, a capacidade que o homem possui de compreender o  sentido da realidade, na certeza de que esse sentido existe porque cadacoisa foi  criada por Deus;

a sabedoria bíblica  é todavia, consciente dos próprios limites: a experiência  humana se confronta, de fato, com o muro da dor (Jó), da morte (Qoelet ou Eclesiastes) e, assim, passa a questionar o próprio Deus;

no entanto, o sábio está sempre consciente de que a sua sabedoria, expressão da procura humana sobre a realidade, é ao mesmo tempo um dom do Senhor (Sirac ou Eclesiastico) e é sinal da sua presença no homem.



O autor do Livro da Sabedoria, que mais uma vez se esconde por trás do pseudônimo de Salomão, é um sábio judeu anônimo que escreve em Alexandria do Egito, provavelmente durante o império de Otaviano Augusto (30 aC-14 dC). Alexandria do Egito, fundada três séculos antes, por Alexandre Magno, com a sua famosíssima biblioteca e o museu, constitui no limiar do Iº século dC o centro cultural do Mediterrâneo oriental e é o símbolo da cultura helênica que domina o nascente império romano. Nesta cidade,  está presente a mais importante colônia judaica fora de Israel: colocados entre os cidadãos romanos e gregos e a grande massa do povo egípcio, os judeus alexandrinos constituem uma comunidade que goza de certa autonomia e da possibilidade de se regular, ao seu interno, com  suas próprias leis. O nosso autor dirige-se, antes de tudo, aos judeus de Alexandria e, em particular, aos jovens.O seu objetivo é duplo: de um lado, chamar aqueles jovens que se sentiam muito atraídos pelo mundo grego no qual viviam,  a ponto de renunciar as próprias tradições e, às vezes, à própria fé. De fato, o mundo helenístico se apresentava com um rosto sedutor, oferecendo aos jovens um projeto educativo que garantia uma formação integral com a aprendizagem das diversas disciplinas da mente e do corpo. Quem não era educado segundo os cânones da cultura grega era excluído de qualquer possibilidade de sucesso na vida pública. Se o primeiro objetivo era alertar os jovens judeus da sedução do mundo grego, o segundo objetivo ainda era mais ambicioso. Para o autor do Livro da Sabedoria, não basta distanciar-se das tentações que ameaçam a fé, é necessário reforçá-la e para  fazê-lo, escolhe um caminho particular: colocando à luz os limites do helenismo, aceitando com coragem e honestidade reconhecer-lhe  os valores. O autor escreve em grego e não no hebraico dos pais e em um grego particularmente refinado e procurado, usando também expressões e conceitos típicos da filosofia grega.



O gênero literário utilizado pelo autor não é tomado emprestado do mundo da Bíblia, mas da retórica grega clássica e é o chamado “elogio": tendo uma finalidade educativa, o autor pretende propor aos jovens judeus alexandrinos o elogio da sabedoria, recomendando-lhes a prática: a sabedoria de Israel não tem medo de se propor em categorias culturais aparentemente estranha a essa.

               

O Livro da Sabedoria é o sinal de uma ponte lançada entre dois mundos, entre Israel e o Helenismo. Trata-se de uma tentativa de inculturação, isto é, de traduzir a fé e a sabedoria de Israel em categorias culturais compreensíveis a quem, como os judeus de Alexandria, estavam agora embebidos de Helenismo. Ao invés do caminho da contraposição e do conflito, o Livro da Sabedoria escolhe o caminho do diálogo: Israel compreende que a própria fé pode sobreviver mesmo no confronto com  um contexto cultural aparentemente adverso e sair dele, de fato, enriquecido.

               

Uma característica do Livro da Sabedoria é o grande cuidado com que foi composto: o autor se serviu de técnicas literárias muito refinadas para criar um texto bem ordenado e, assim, favorecer a compreensão  do leitor. O livro é dividido em três grandes seções:

1. O Livro do futuro (1,1-6,21): A primeira parte se concentra sobre o tema da vida eterna que aguarda o justo. O livro se abre com uma mensagem de esperança  proclamada com força: o problema do sofrimento, da dor, da morte, colocados dramaticamente nos livros de Jó e Qoelet (Eclesiastes), encontra uma primeira resposta no anúncio de uma vida que não termina.

2. O Livro do presente (6,22-10,21): descreve as características da sabedoria que Deus dá ao homem na sua vida presente para que a acolhendo, possa encontrar aquela vida eterna prometida na primeira parte do livro.

3. O Livro do passado (11-19): O livro se conclui com uma longa seção assinalada por uma reflexão sobre fatos do passado: meditando sobre os acontecimentos do êxodo do Egito, o autor descobre na história do seu povo os sinais de uma presença de Deus no mundo que nunca falha: assim, o passado fundamenta a esperança no futuro.

                O livro da Sabedoria é um texto em diálogo com o mundo grego, mas não por esse motivo, deixa de ser a obra de um hebreu profundamente   crente, bem enraizado na própria tradição. Todo o livro é percorrido por uma contínua série de alusões a textos bíblicos precedentes: a primeira parte retorna sobre ideias já expressas em Jó e Qoelet, nos cânticos do Servo (Is. 40-55), nos textos apocalípticos de Daniel 7 e 12 e no Salmo 2.  A segunda parte se baseia no célebre texto da sabedoria de Salomão (1 Reis, 3; 2Cr. 1) e sobre textos relativos à "Senhora Sabedoria" de Provérbios, capítulos 8-9. A terceira parte é uma constante releitura dos textos do Êxodo, enquanto os capítulos 13-15 ocupam numerosos textos do segundo, terceiro Isaías (capítulos 40-66).

                O método seguido pelo nosso autor é aquele utilizado nos escritos do judaísmo palestinense de seu tempo e aquele das medras: é um modo de comentar a Escritura com a convicção de que a Palavra de Deus é sempre atual e pode e deve ser reproposta em contextos sempre novos. Nosso autor é convicto de que os textos do Êxodo, velhos com mais de mil anos, conservam a sua plena validade como Palavra de Deus dirigida aos judeus de Alexandria do seu tempo. O Livro da Sabedoria procura, assim, traduzir os textos da Escritura no contexto cultural e histórico de seu tempo, mostrando toda a sua atualidade .O nosso sábio nos ensina que a Palavra de Deus permanece eternamente, não tanto como dogma prefixado e imutável, mas como luz lançada sobre situações históricas mutáveis, palavra que exige continuamente ser atualizada e traduzida para contextos sempre novos, "permitindo-nos assim a ler a Bíblia com a vida e a vida com a Bíblia"(a Palavra de Deus se difunda e seja glorificada - Nota CEI 1995).

                Discute-se se os autores do Novo Testamento conheceram o Livro da Sabedoria: parece que ao menos Paulo e João o tiveram presente; em particular a teologia da sabedoria em Sab. 7-9 serve como antecedente ao prólogo de João e ajuda a entender a teologia do Espírito em São Paulo.
                O livro da Sabedoria foi definitivamente aceito no cânone das Escrituras da Igreja somente no Concílio de Trento. São Jerônimo, não o considerando um texto inspirado, se recusou a traduzi-lo. Foi pela defesa feita por Santo Agostinho, que a Sabedoria entraria entre os livros considerados inspirados. O texto não é aceito pelo cânon hebraico da Escritura, também é excluído das Igrejas reformadas, enquanto os ortodoxos nunca tomaram uma decisão a esse respeito.

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