O nosso autor dá um passo avante no
quadro da tradição sapiencial: a sabedoria não é só a capacidade humana de
buscar criticamente o sentido da realidade à luz da própria experiência, mas é
antes de tudo o revelar-se de Deus, o sinal da sua presença dentro da alma
humana. A sabedoria de um lado é intimamente ligada a Deus, tanto a formar como
uma única coisa com ele, ainda mais está presente na criação e na história do
homem e a ele é oferecida, contanto que a queira acolher. Em síntese, a
sabedoria é mediadora entre Deus e os homens: Deus é transcendente e separado
do mundo; através da sabedoria ele se faz presente no mundo e no próprio coração
do homem. A sabedoria é o ponto no qual a busca do homem se cruza com o dom de
Deus e opera para que Deus se faça presente no mundo e no coração dos homens e
para que o mistério de Deus se revele de modo tal a construir no interior, percursos de salvação, percursos de retorno à
plenitude da vida.
Neste capítulo de Sabedoria, o
mestre evidencia algumas chamadas. Na história humana tudo isto que testemunha
uma escolha de morte (a traição, a destruição da vida, um desastre que assinala
um impulso para a morte) leva consigo consequências que são dotadas de uma
íntima fecundidade de redenção, pelos quais os dados que servem para ilustrar o
falecimento são, no momento oportuno, também a ocasião própria para constatar
como se abrem caminhos de retorno à origem da vida. O capítulo nasce de uma
meditação sobre um texto bíblico já existente, o Êxodo, que o sábio considera
palavra viva de Deus e base de referência a repropor aos seus contemporâneos
procurando traduzir a mensagem bíblica e tornando-a acessível a judeus educados
num contexto de raiz grega. Para obter esta finalidade o autor usa a comparação
entre duas figuras exemplares, complementares e antagonistas: os hebreus e os
egípcios; em particular, faz dos israelitas do tempo do Êxodo o modelo daqueles
israelitas fiéis à lei (os justos) já apresentados na primeira parte do livro
(Sab. 1-6) e, ao contrário, dos egípcios o modelo daqueles “ímpios”, ou seja, o
modelo daqueles judeus apóstatas descritos por exemploem Sab. 2 e 5. Na luta
entre judeus e ímpios lembra que alguns escolhem uma vida de sucesso, mas é na
realidade uma morte real, enquanto os justos parecem sofrer uma morte e na
verdade são visitados por Deus porque a sabedoria age no mundo desde o início
e, se a recebe, tudo transforma e habilita para o viver do homem. Contemplar
como a sabedoria é revelação para os israelitas e para os egípcios é
importante, porque como se é revelada então, a sabedoria se revela seja aos
judeus de Alexandria seja a todos os povos e criaturas, portanto também a nós.
Experimentemos então a
identificarmos com os protagonistas, e será importante, para que nós, aqui,
revivamos o mistério da salvação. Ao identificarmo-nos, temos uma chave de
leitura da vida – que pode se tornar uma maldição ou um canto –e das coisas que
nos acontecem, que se podem ler como graça e benção, ou se tornar modo para
endurecer-se; isto que para alguns é experiência negativa, obstinar-se e faz
resistir inutilmente até a morte, para outros se torna prova e lição para
aperceber-se que Deus vem ao encontro das nossas necessidades, sacia a nossa
fome, é providência e não abandona, o trabalho de viver diz respeito a todos; a
vida tem tantas lapidações, tantas vicissitudes e neste sentido é uma grande
palestra, mas quem segue a sabedoria se descobre que não está só e que o Senhor
é bom com todos, paciente e amante da vida. Esta dúplice leitura da vida é
evidenciada pelas oposições, ou paralelismos, propostos pelo autor, que nos
recordam que pode ser assim também para nós.
Rãs e codornizes: gosto e desgosto.
Vv 1-4. Comparando a praga das rãs que apodrecem e tiram o
apetite, ao episódio das codornizes, o autor quer demonstrar que tanto os israelitas
como os egípcios viveram a penúria, mas enquanto para os egípcios aumenta o
desgosto e a perda de apetite por causa dos animais que adoravam, Israel
descobre as codornizes, um alimento de gosto saboroso:é o gosto do
“dom”, sinal com o qual o Senhor encontra a necessidade e protege a vida. O
mesmo sinal permite aos egípcios entender que existe um outro modo de viver a
necessidade, o de receber a praga como lição para reconhecer que Deus é o
Senhor. Endurecer-se deixa a necessidade sem solução.
Gafanhotos e serpente: uma dor
terapêutica.
Nosvv 5-14 sãoconfrontadas duas picadas: a dos gafanhotos que
picam e espalham doenças entre os egípcios e referindo-se à experiência de
Israel no deserto (num. 21,4-29), a picada das serpentes venenosas causa morte
entre os israelitas que se rebelaram a Moisés. A picada do gafanhoto se torna
fatal para os egípcios, enquanto para Israel, que pela primeira vez reconhece o
seu pecado, a picada da serpente se torna “picada interior”, terapêutica,
permite o sofrimento para corrigir o sentimento do coração, e se tornar sinal
de salvação em lembrança da lei recebida e da obediência à palavra. A picada
não introduziu o veneno, mas se tornou terapia através da dor pelo pecado
cometido. Os israelitas picados pelas serpentes seguravam quando olhavam a
serpente de bronze colocada sobre uma haste por Moisés por ordem de Deus.
Também nós vemos sobre a cruz o nosso mal vencido: o Crucifixo é o dom de Deus
rejeitado, o maior mal que pôde fazer a história humana, mas aquele mal é
assumido pelo homem que o leva e, levando-o, o desvaloriza, o vence, o perdoa.
Devemos olhá-la para entender que a salvação não é “uma coisa”, mas a salvação
é Ele, é estar diante do seu rosto, é receber o seu abraço, é sentir o seu
perdão, é confiar-se n’Ele para ver-se erguido, para viver de um modo novo,
aquele modo de olhar a realidade típica de quem se reconhece pecador, mas salvo,
filho de Deus, amado e perdoado; olhá-lo, ainda, para imaginá-lo salvador de
todos, também daqueles que, como os egípcios, se entreguem à morte, podendo
fazer experiência de conversão e salvação. Através das picadas o Senhor sempre
alcança os nossos limites, pecados e ai de mim porque a sua palavra se torna
viva em nós; quer encontrar-nos, abrirmos à admiração por um amor sem medida e
sempre novo; nos abraça na sua misericórdia que salva e cura porque o seu amor
é mais forte do que a morte.
Senhor, eu não consigo colocar-te nos meus esquemas, mas olho a
tua cruz. Desta cruz que parecia o fim, nasce a esperança. Então, Senhor, eu
creio que tu és capaz de fazer germinar a esperança em mim, de fazer-me viver
esta dor como cruz e esta mesma dor se tornará esperança(Dom G. Moioli).
Granizo e maná: aspereza e doçura
Vv 15-29. O que sai da mão de Deus é
obra do céu? Duas coisas: a água que queima ou o maná. Parece que saltam todas
as leis da natureza: a água é elemento benéfico e a chuva para Israel é o tempo
belo, mas esta água queima, devasta! Se respeitamos a criação ela nos
acompanha. Se a arruinamos,se desencadeia e se “revolta”, “revide”, “dá o
troco”, porque através da criação Deus guia os homens. Deus eterno é o
Senhor, que criou os confins da terra. Ele não se afadiga nem se cansa, a sua
inteligência é insondável. Ele dá força ao cansado e multiplica o vigor do
enfraquecido (Is 40, 28-29).
E enquanto os egípcios são
atingidos com aspereza pelo granizo, para os filhos de Israel a mão de Deus faz
descer o maná, doce e suave, capaz de satisfazer toda delícia e todo gosto. Por
quarenta anos, descia pontualmente todas as manhãs, era proporcionada ao desejo
de cada um, não se derretia para que todos tivessem juntos a sua ração, era
distribuída de modo que ninguém pensasse ter ficado com a sobra do outro e
entendiam que era obra do amor de Deus. Por isto se tornou símbolo eucarístico,
porque não existe desejo de vida que seja insatisfeito do encontro com o
Senhor, porque o amor conhece todo o nosso gosto e todo nosso desejo, toda
nossa expectativa e todo nosso pedido e, educando-nos nos alcança na
necessidade, mas, sobretudo,nos forma a um estilo de pobreza, simplicidade,
contemplação, perseverança, paciência. Uma oração hebraica agradecendo no fim
da refeição: Porque comemos isto que é seu. O maná é mais do que isto, é
cheio do seu sabor.
Talvez também na nossa história
podemos reconhecer ações de Deus que parecem ter modulado as energias da
natureza para que aprendêssemos a nos reconhecer objeto do seu amor e aprendêssemos
a agradecer, que existe uma palavra, um maná para nós; a nossa consciência é
responsável pela ação da sabedoria na nossa vida e no mundo em torno a nós,
porque a alguns amaldiçoará e outros abençoarão o mesmo céu e a mesma mão, mas
a sabedoria tem as suas lições: se é assim para ímpios e justos pode ser assim
também para nós. Devemos aprender a olhar o mundo e a nos relacionarmos com
ele, abrindo-nos à oração que nos consente ver e ler as coisas como uma benção
mais do que maldição, entenderemos que os frutos da terra, tão preciosos,
saciam e fazem viver porque são dom de Deus e reconheceremos, contido neles, o
amor de Deus que os acompanha.
O espírito da sabedoria é “amigo do
homem” e a própria sabedoria é prelúdio do dom do Espírito Santo e encarnação
da palavra de Deus em Jesus.
Vincenza
Por toda a gota de cansaço, por
toda a lágrima de dor, por toda lágrima de sangue do coração, por todo o
aniquilamento do eu ele dá o cêntuplo de si. E assim acontece a união (CdA 74).
Para refletir
O Deus apresentado a nós no livro não pode ser senão
o “Deus dos antepassados e o Senhor de misericórdia”. É mesmo verdade que
conserva os caráteres de severidade e de julgamento, mas é igualmente evidente
que o autor se esforça para descobrir como o verdadeiro rosto de Deus seja um
rosto de amor: conseguimos viver o essencial escutando as pessoas, é isto que
nos acontece, reconhecendo nelas a Deus que fala?
«Quem tem Deus, nada lhe falta»: diante das
dificuldades, limitações ou situações na qual não podemos livrar-nos permanece
em nós esta fé? A paz do coração resiste?
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