domingo, 26 de abril de 2020

8º tema. A história entrelaçada dos justos e dos ímpios. Ler: Sabedoria. cap. 16,1-29


O nosso autor dá um passo avante no quadro da tradição sapiencial: a sabedoria não é só a capacidade humana de buscar criticamente o sentido da realidade à luz da própria experiência, mas é antes de tudo o revelar-se de Deus, o sinal da sua presença dentro da alma humana. A sabedoria de um lado é intimamente ligada a Deus, tanto a formar como uma única coisa com ele, ainda mais está presente na criação e na história do homem e a ele é oferecida, contanto que a queira acolher. Em síntese, a sabedoria é mediadora entre Deus e os homens: Deus é transcendente e separado do mundo; através da sabedoria ele se faz presente no mundo e no próprio coração do homem. A sabedoria é o ponto no qual a busca do homem se cruza com o dom de Deus e opera para que Deus se faça presente no mundo e no coração dos homens e para que o mistério de Deus se revele de modo tal a construir no interior,  percursos de salvação, percursos de retorno à plenitude da vida.

Neste capítulo de Sabedoria, o mestre evidencia algumas chamadas. Na história humana tudo isto que testemunha uma escolha de morte (a traição, a destruição da vida, um desastre que assinala um impulso para a morte) leva consigo consequências que são dotadas de uma íntima fecundidade de redenção, pelos quais os dados que servem para ilustrar o falecimento são, no momento oportuno, também a ocasião própria para constatar como se abrem caminhos de retorno à origem da vida. O capítulo nasce de uma meditação sobre um texto bíblico já existente, o Êxodo, que o sábio considera palavra viva de Deus e base de referência a repropor aos seus contemporâneos procurando traduzir a mensagem bíblica e tornando-a acessível a judeus educados num contexto de raiz grega. Para obter esta finalidade o autor usa a comparação entre duas figuras exemplares, complementares e antagonistas: os hebreus e os egípcios; em particular, faz dos israelitas do tempo do Êxodo o modelo daqueles israelitas fiéis à lei (os justos) já apresentados na primeira parte do livro (Sab. 1-6) e, ao contrário, dos egípcios o modelo daqueles “ímpios”, ou seja, o modelo daqueles judeus apóstatas descritos por exemploem Sab. 2 e 5. Na luta entre judeus e ímpios lembra que alguns escolhem uma vida de sucesso, mas é na realidade uma morte real, enquanto os justos parecem sofrer uma morte e na verdade são visitados por Deus porque a sabedoria age no mundo desde o início e, se a recebe, tudo transforma e habilita para o viver do homem. Contemplar como a sabedoria é revelação para os israelitas e para os egípcios é importante, porque como se é revelada então, a sabedoria se revela seja aos judeus de Alexandria seja a todos os povos e criaturas, portanto também a nós.

Experimentemos então a identificarmos com os protagonistas, e será importante, para que nós, aqui, revivamos o mistério da salvação. Ao identificarmo-nos, temos uma chave de leitura da vida – que pode se tornar uma maldição ou um canto –e das coisas que nos acontecem, que se podem ler como graça e benção, ou se tornar modo para endurecer-se; isto que para alguns é experiência negativa, obstinar-se e faz resistir inutilmente até a morte, para outros se torna prova e lição para aperceber-se que Deus vem ao encontro das nossas necessidades, sacia a nossa fome, é providência e não abandona, o trabalho de viver diz respeito a todos; a vida tem tantas lapidações, tantas vicissitudes e neste sentido é uma grande palestra, mas quem segue a sabedoria se descobre que não está só e que o Senhor é bom com todos, paciente e amante da vida. Esta dúplice leitura da vida é evidenciada pelas oposições, ou paralelismos, propostos pelo autor, que nos recordam que pode ser assim também para nós.

Rãs e codornizes: gosto e desgosto.

Vv 1-4. Comparando a praga das rãs que apodrecem e tiram o apetite, ao episódio das codornizes, o autor quer demonstrar que tanto os israelitas como os egípcios viveram a penúria, mas enquanto para os egípcios aumenta o desgosto e a perda de apetite por causa dos animais que adoravam, Israel descobre as codornizes, um alimento de gosto saboroso:é o gosto do “dom”, sinal com o qual o Senhor encontra a necessidade e protege a vida. O mesmo sinal permite aos egípcios entender que existe um outro modo de viver a necessidade, o de receber a praga como lição para reconhecer que Deus é o Senhor. Endurecer-se deixa a necessidade sem solução.

Gafanhotos e serpente: uma dor terapêutica.

Nosvv 5-14 sãoconfrontadas duas picadas: a dos gafanhotos que picam e espalham doenças entre os egípcios e referindo-se à experiência de Israel no deserto (num. 21,4-29), a picada das serpentes venenosas causa morte entre os israelitas que se rebelaram a Moisés. A picada do gafanhoto se torna fatal para os egípcios, enquanto para Israel, que pela primeira vez reconhece o seu pecado, a picada da serpente se torna “picada interior”, terapêutica, permite o sofrimento para corrigir o sentimento do coração, e se tornar sinal de salvação em lembrança da lei recebida e da obediência à palavra. A picada não introduziu o veneno, mas se tornou terapia através da dor pelo pecado cometido. Os israelitas picados pelas serpentes seguravam quando olhavam a serpente de bronze colocada sobre uma haste por Moisés por ordem de Deus. Também nós vemos sobre a cruz o nosso mal vencido: o Crucifixo é o dom de Deus rejeitado, o maior mal que pôde fazer a história humana, mas aquele mal é assumido pelo homem que o leva e, levando-o, o desvaloriza, o vence, o perdoa. Devemos olhá-la para entender que a salvação não é “uma coisa”, mas a salvação é Ele, é estar diante do seu rosto, é receber o seu abraço, é sentir o seu perdão, é confiar-se n’Ele para ver-se erguido, para viver de um modo novo, aquele modo de olhar a realidade típica de quem se reconhece pecador, mas salvo, filho de Deus, amado e perdoado; olhá-lo, ainda, para imaginá-lo salvador de todos, também daqueles que, como os egípcios, se entreguem à morte, podendo fazer experiência de conversão e salvação. Através das picadas o Senhor sempre alcança os nossos limites, pecados e ai de mim porque a sua palavra se torna viva em nós; quer encontrar-nos, abrirmos à admiração por um amor sem medida e sempre novo; nos abraça na sua misericórdia que salva e cura porque o seu amor é mais forte do que a morte.

Senhor, eu não consigo colocar-te nos meus esquemas, mas olho a tua cruz. Desta cruz que parecia o fim, nasce a esperança. Então, Senhor, eu creio que tu és capaz de fazer germinar a esperança em mim, de fazer-me viver esta dor como cruz e esta mesma dor se tornará esperança(Dom G. Moioli).

Granizo e maná: aspereza e doçura

Vv 15-29. O que sai da mão de Deus é obra do céu? Duas coisas: a água que queima ou o maná. Parece que saltam todas as leis da natureza: a água é elemento benéfico e a chuva para Israel é o tempo belo, mas esta água queima, devasta! Se respeitamos a criação ela nos acompanha. Se a arruinamos,se desencadeia e se “revolta”, “revide”, “dá o troco”, porque através da criação Deus guia os homens. Deus eterno é o Senhor, que criou os confins da terra. Ele não se afadiga nem se cansa, a sua inteligência é insondável. Ele dá força ao cansado e multiplica o vigor do enfraquecido (Is 40, 28-29).

E enquanto os egípcios são atingidos com aspereza pelo granizo, para os filhos de Israel a mão de Deus faz descer o maná, doce e suave, capaz de satisfazer toda delícia e todo gosto. Por quarenta anos, descia pontualmente todas as manhãs, era proporcionada ao desejo de cada um, não se derretia para que todos tivessem juntos a sua ração, era distribuída de modo que ninguém pensasse ter ficado com a sobra do outro e entendiam que era obra do amor de Deus. Por isto se tornou símbolo eucarístico, porque não existe desejo de vida que seja insatisfeito do encontro com o Senhor, porque o amor conhece todo o nosso gosto e todo nosso desejo, toda nossa expectativa e todo nosso pedido e, educando-nos nos alcança na necessidade, mas, sobretudo,nos forma a um estilo de pobreza, simplicidade, contemplação, perseverança, paciência. Uma oração hebraica agradecendo no fim da refeição: Porque comemos isto que é seu. O maná é mais do que isto, é cheio do seu sabor.

Talvez também na nossa história podemos reconhecer ações de Deus que parecem ter modulado as energias da natureza para que aprendêssemos a nos reconhecer objeto do seu amor e aprendêssemos a agradecer, que existe uma palavra, um maná para nós; a nossa consciência é responsável pela ação da sabedoria na nossa vida e no mundo em torno a nós, porque a alguns amaldiçoará e outros abençoarão o mesmo céu e a mesma mão, mas a sabedoria tem as suas lições: se é assim para ímpios e justos pode ser assim também para nós. Devemos aprender a olhar o mundo e a nos relacionarmos com ele, abrindo-nos à oração que nos consente ver e ler as coisas como uma benção mais do que maldição, entenderemos que os frutos da terra, tão preciosos, saciam e fazem viver porque são dom de Deus e reconheceremos, contido neles, o amor de Deus que os acompanha.

O espírito da sabedoria é “amigo do homem” e a própria sabedoria é prelúdio do dom do Espírito Santo e encarnação da palavra de Deus em Jesus.

Vincenza

Por toda a gota de cansaço, por toda a lágrima de dor, por toda lágrima de sangue do coração, por todo o aniquilamento do eu ele dá o cêntuplo de si. E assim acontece a união (CdA 74).

Para refletir

O Deus apresentado a nós no livro não pode ser senão o “Deus dos antepassados e o Senhor de misericórdia”. É mesmo verdade que conserva os caráteres de severidade e de julgamento, mas é igualmente evidente que o autor se esforça para descobrir como o verdadeiro rosto de Deus seja um rosto de amor: conseguimos viver o essencial escutando as pessoas, é isto que nos acontece, reconhecendo nelas a Deus que fala?

«Quem tem Deus, nada lhe falta»: diante das dificuldades, limitações ou situações na qual não podemos livrar-nos permanece em nós esta fé? A paz do coração resiste?

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