O mandamento novo
«Carissimo, não vos escrevo
um novo mandamento…» (2,7). Faz aqui a sua primeira aparição de um tema que se
verá muitas vezes no decorrer da carta e verificado em tudas as suas
tonalidades: o tema de amor. Um tema que vem exposto através quela expressão já
usada no quarto Evangelho próprio para indicar o amor fraterno e recíproco
sobre o exemplo de Jesus: «Vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos
outros…» (Gv 13,34).
O «mandamento novo», que o
autor da carta ricorda aos seus destinatários, não é outra coisa do que o
mandamento que a primeira comunidade cristã recebeu de Jesus come sinal
distintivo da própria pertença a Ele: «Por isto todos saberão que sois meus discípulos:
se tiveres amor uns para com os outros» (Gv 13,35). Neste sentido é também um
«mandamento antigo» porque se coloca nas origens da comunidade dos discípulos
de Jesus e faz parte desde o início da sua “bagagem” de identidade, daquilo que
a constitue, do seu trato distintivo («…que recebestes desde o princípio»).
«Novo» e «antigo» são dois termos que parece difícil manter juntos por ser uma
mesma realidade: o seu caráter contraposto, realmente (se uma coisa è nova não
pode ser ao mesmo tempo antiga, e vice-versa). No entanto para o «mandamento
novo» de Jesus, o mandamento evangélico por excelência, este (antigo-novo),
porque è sìm uma realidade antiga, uma palavra ouvida «desde o princípio» (1Gv
1,1; 3,11) e preparada desde os primordios da história do povo de Israel (cf.
Lv 19,18), mas è ao mesmo tempo também uma palavra nova porque exprime e revela
toda a novidade de Jesus, o tempo novo inaugurado com a sua vinda e o mondo
novo que com Ele iniciou a tomar forma. Se o mandamento do amor fraterno já era
conhecido no Antigo Testamento, é porém só com Jesus, com a sua vinda, que ela
adquire uma profondidade, uma amplidão e uma intensidade até então imaginável.
E a maior novidade é «como eu vos amei» (Gv 13,34) que Jesus acrescenta ao
convite de amar-nos reciprocamente.
O mandamento è «novo», então, porque novo é
o amor com o qual podemos viver-lo, porque è o amor próprio de Jesus que nós
acolhemos e que por nossa vez doamos para os irmãos. A novidade é que agora nós
nos tornamos capazes de amar “como Ele”, porque è Ele mesmo que ama em nós, se
nós lhe permitirmos ficar em nossos corações e deixarmos que o seu Espírito
encontre habitualmente casa em nós (cf. 1Gv 3,24: «Nisto conhecemos que ele
permanece em nós: pelo Espírito que nos é dado»).
No novo dia
Tudo isto se torna possível
desde o momento que «já aparece a luz verdadeira» (v. 8b). Nós podemos viver,
podemos caminhar, podemos amar em plenitude, porque já estamos no dia luminoso
inaugurado por Jesus, já estamos na sua luz e portanto todo o nosso agir pode
assumir uma nova conotação. Como sem a luz não è possível alguma forma de vida
e todas as coisas permanece na obscuridade e no anonimato (as suas formas, as
suas cores, os seus movimentos não podem manifestar-si), assim sem aquela luz
que vem de Deus – ou melhor, que è o próprio Deus (cf. 1,5!) – não è possível
caminhar com Ele, comportar-se como Ele (cf. 2,6).
E é próprio o amor, aquele
que vem d’Ele, aquele que é infuso nos nossos corações por meio do seu
Espírito, o critério e a medida para perceber se efetivamente estamos
caminhando a luz do dia, do Seu dia: «Quem diz que estar na luz…» (2,9). Amor e
luz, ódio e trevas, estão sempre juntas, são quase sinônimos: o amor abre os
olhos e ilumina a vida; o ódio ao contrário torna cegos e faz descer sobre tudo
uma coberta de trevas, quase prelúdio de uma morte certa. Alguém fala aqui de
«Clarividência do amor» (B. Maggioni), porque o amor não è só uma dimensão do
nosso agir, do nosso comportamento, alguma coisa que resguarda somente, por
assim dizer, a esfera moral da nossa vida, mas é também – e talvez a primeira
âncora – isto que permite de conhecer, de ver, de colher os significados
profundos das coisas. Neste sentido, o amor é uma forma de conhecimento, ou
seja, é a forma de conhecimento mais alta porque consente de conhecer ao
próprio modo de Deus, consente de conhecer compreendendo cada coisa na sua
verdade, aquela verdade que emerge em toda a sua clareza só quando é aproximada
por um olhar humilde e acolhedor, que não julga e não fere, mas encoraja e faz
crescer…
Se «Deus é luz» (1,5), se Jesus é a «luz
verdadeira» (Gv 1,9) vinda ao mondo para iluminar cada homem, é só o amor – o
Seu amor antes de tudo, que se torna presente no nosso – que confirma e torna
manifesta esta verdade. Quando amo o irmão, quando acolho todos os
acontecimentos da vida com aquela íntima disposição do coração que busca ver o
bem em toda parte, eis que tudo aparece mais luminoso, eis que aquela luz que
já está presente neste mondo se torna mais clara, mais intensa e resplendente.
É talvez por isto que se diz que “o amor transfigura todas as coisas”, no
sentido que faz aflorar aquela luz que cada realidade já tem em si e que se liberta somente quando é tocada por uma força
boa capaz de exaltar todas as potencialidades positivas que existem nela.
O mundo sem esta luz
mostra-se sem vida, imerso nas trevas da ignorância, do pecado, da morte. Por
isto o autor da carta exorta com força a não amar «o mundo, nem as coisas do
mundo» (2,15a). O mundo para “não amar” é aqui, esse mundo que se opõe a Deus,
que não quer deixar-se iluminar pela sua luz e que pretende colocar-se no
centro da vida dos homens, quase como um ídolo para ser adorado no lugar do
verdadeiro Deus. Quem ama o mundo (no sentido apenas dito), quem se deixa
seduzir pelas suas lógicas de morte, de mentira, de prostituições, é sinal que
o amor do Pai (se entende no dúplice sentido do amor que provém de Deus e do
amor que nós devemos para com Ele) não encontrou ainda morada nele.
O mundo passa com a sua concupiscência
E para esclarecer melhor que coisa levam para
longe de Deus, quais são aquelas tendências ruins que impedem ao amor do Pai de
vir morar em nós, eis que João as exemplifica em três inclinações ou paixões
negativas nas quais se encerram tudo o que está realmente em contraste com a
lógica do amor divino: «a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e
a soberba da vida» (2,16). Sem entrar em minuciosos detalhes, podemos dizer que
as primeiras duas expressões indicam sobretudo a tendência desordenada para qualquer
coisa que se deseja, a busca apaixonada e desmedida de qualquer coisa Que não é
Deus, mas que quer tomar-Lhe o lugar. A terceira expressão, ao contrário,
sublinha o orgulho pelo que se possui (esta última expressão de fato poderia
ser também traduzida com «a arrogância da riqueza») e a falsa segurança de uma
vida satisfeita, cheia mais de bens do que de verdadeiras riquezas da alma (uma
ilustração eficaz deste acontecimento podemos encontrar na parábola do rico
louco contada em Lc 12,15-21).
«E o mundo passa com a sua
concupiscência…» (2,17). Além de ser enganador e nocivo, este modo de “amar o
mundo” é também passageiro, sem consistência, absolutamente falso, porque o
mundo «passa (é passageiro)». enquanto quem se deixa conduzir pela vontade de Deus,
quem procura fazer todas as coisas à luz do seu amor, quem procura caminhar
«como Cristo caminhou» (2,6), «permanece» por toda a eternidade, a sua vida
adquire solidez, durabilidade e estabilidade. Como as trevas «passam/se
desfazem (é passageira)» (v. 8b) ao chegar a luz, assim quem se obstina a
caminhar nas trevas não pode esperar “permanecer”, eternamente, porque não está
em comunhão com a luz, é só a realidade que “permanece” enquanto sinal e
revelação do próprio rosto de Deus (cf 1,5). Como nos narra o livro do
Apocalipse, no fim dos tempos «não existe mais noite» (Ap 21,15; 22,5), nem
trevas alguma, porque a luz do Senhor invadirá tudo e brilhará para sempre.
Para concluir, podemos
ouvir outra vez aqueles versículos colocados quase no centro do nosso trecho e
que constituem uma espécie de intermédio no qual o autor da carta se volta
diretamente aos seus destinatários dirigindo-lhes a palavra como «filhinhos»
«pais» jovens» (vv. 12-14). Dirigindo-se aos seus leitores com estes diversos
nominativos, João parece mesmo dirigir-se a todos, aos membros de todas as
gerações, a toda categoria de pessoas, a todo grupo presente na comunidade
destinatária da carta (alguns viram aqui três distinções não só de idade mas
também de maturidade espiritual, outros leram três qualidades presentes em cada
um: como a dizer que cada um pode sentir-se interpelado e chamado diretamente
para a causa…). «Filhinhos» «pais» «jovens»: cada um possui um dom, um grande
dom para cuidar zelosamente e para valorizar plenamente, um dom para reconhecer
com infinita gratidão e para não se deixar de nenhum modo que se perca pelo
caminho.
O perdão dos pecados, o conhecimento de Deus como Pai e a vitória
sobre o Maligno, são realmente três grandes dons que todo cristão já possui
pela força do «nome» de Jesus (cf. v. 12), isto é, pela sua obra, pela sua vida
e pela sua morte oferecidas por nós. Podemos ler estes três dons – ou realidade
dos quais o cristão já faz experiência – come coligados e concatenados um com o
outro: o verdadeiro rosto de Deus como Pai, de fato, se descobre primeiramente
através da experiência do perdão (cf. Lc 15!) e, uma vez conhecido o Pai e
tendo acolhido a sua palavra no profundo do coração, se pode afrontar a luta
contra o Maligno seguros da vitória. Retorna aqui, neste versículo 14, aquele
verbo tão característico de João já aparecido no v. 10 e que aparecerá ainda no
v. 17: «permanecer». «Sois fortes e a palavra de Deus permanece em vós».
“Permanecer em” é expressão que diz a ligação duradoura de uma comunhão, a estabilidade
em uma relação, o permanecer de uma realidade em outra. Se a palavra de Deus
permanece em nós, mora em nós, é o próprio Deus que fez morada em nós e em nós
estabeleceu a sua casa. Se não somos nós a expulsara-lo, ele permanecerá, nos
guardará e nos protegerá de todo mal, porque a sua palavra é poderosa, viva e
eficaz (cf Eb 4,12), e nada e ninguém pode resistir diante dela. Guardemos,
portanto, esta palavra no coração, deixemos que cresça e dê os seus
maravilhosos frutos, e conheceremos os abismos do amor de Deus, a beleza do seu
rosto de Pai e o esplendor daquele mundo novo, transfigurado pela luz que
apareceu com a vinda do seu Filho…
Para continuar a reflexão
✓ João não separa nunca o amor por Deus do amor
pelos irmãos. O «mandamento novo», sobre o qual retorna muitas vezes nos seus
escritos, diz toda a profundidade de um amor que muito olha para o “alto” (o
Pai), mas se sente impelido a dirigir-se para o “baixo” (os irmãos).
Acreditamos que o amor – este amor tão concreto, tão útil e quotidiano, tão
atento a todos aqueles que preenchem os nossos dias – seja a única verdadeira
novidade da nossa vida e que a sua luz seja suficiente para iluminar o nosso
caminho e a levarem ao cumprimento todos os nossos desejos?
✓ A nossa vida neste mundo é
constantemente assinalada por uma luta que assume os traços de um dúplice amor,
uma dúplice paixão: pelas coisas do mundo e pelas realidades do Céu. «O amor do
Pai», como temos visto, é incomparável com «O amor do mundo» (v. 15). Se somos
filhos de Deus, existe um só amor que se nos destinam enquanto filhos: como
deixá-lo crescerem em nós, como deixarmos encher o coração assim a ponto de não
conceder muito espaço a isto que João chama «a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba da vida»?
✓ Como filhas amadas, como
discípulas do Senhor, como destinatárias de uma palavra que é luz sobre o nosso
caminho, temos recebido o maior dom que nos podia ser dado: a comunhão com
Deus, a participação na sua própria vida; uma comunhão que nos leva a plenitude
da alegria (cf. 1,3-4). Como cuidar deste dom? Como viver tendo cuidado para
não dissipar este tesouro, para não desperdiçar toda a graça recebida, para não
apagar aquela luz que Deus já acendeu em nós? Porque – pensemos bem-este é o
único e só contributo que nos é pedido…
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