O termo vocação tem uma história no contexto do pensamento bíblico e cristão. O Antigo Testamento fala tanto de vocação pessoal como coletiva no sentido de um chamado a existir e a encontrar-se com o único e verdadeiro Deus, para ser enviado a manter viva a memória entre os povos e a desenvolver um dever específico na transformação do mundo em uma digna morada ao homem, com a certeza de poder contar com a ajuda divina. Para o Novo Testamento, vocação é o chamado a seguir Cristo e a agir como membro ativo do Corpo místico, que é a Igreja, para levar aos homens o anúncio da sua mensagem de salvação e testemunhá-lo com a vida.
Entre os
séculos IV e V, o discurso vocacional começou a registrar um deslocamento da
atenção. Esta foi dirigida, preferencialmente, à vida monástica e religiosa em
primeiro lugar e ao sacerdócio ministerial depois, privando pouco a pouco essas
mesmas “escolhas de vida” de sua justificação de fundo, que é a vocação cristã
na qual essas se inserem e a partir da qual se desenvolvem.
O enquadramento
do tema vocacional nessa ótica restrita levou, por sua vez, a selecionarem-se,
no texto bíblico, apenas os trechos que se referiam ou que se presumia que
dissessem respeito às assim chamadas “vocações de consagração especial”,
resultando assim numa apresentação redutiva de toda a temática vocacional.
Nos últimos anos, graças também à contribuição das
ciências humanas, o termo vocação recuperou a conotação do seu originário
significado bíblico. Esse diz respeito à própria concepção da pessoa como algo
que a faz ser o que é e a diferencia das outras coisas. Por isso a pessoa
humana não é mais considerada como uma realidade que tem uma vocação, mas, ela
mesma, no mais íntimo de seu ser, uma vocação. Desse modo, o conceito de
vocação estende-se a todo homem.
Cada vida humana, portanto, é vocação. Isto é, um chamado
a existir, a coordenar e a fazer frutificar com a ajuda de Deus, na condição de
filhos adotivos, aquele conjunto de atitudes e de inclinações, que os homens
possuem, em vista do cumprimento de um projeto e de uma missão no mundo.
1.1. A criação
Um acontecimento fundamental domina a história da
salvação: Deus falou. O primeiro grande chamado de Deus consiste em chamar à
existência as coisas que não são: “Ele fala e tudo se faz, ordena e tudo
existe” (Sal. 33,9).
A criação da realidade cósmica a partir do nada parece
representar o aspecto preliminar e geral de um chamado coletivo que precede e,
portanto, funda a existência de todo ser. Deus se compraz no seu bem infinito
e, em virtude dessa aprovação, decide livremente expandir sua bondade para fora
de si, chamando aquilo que não é à existência. Ele faz isso não para aumentar o
próprio bem ou para ter a posse de um bem que lhe fosse extrínseco, mas apenas
para dilatar a circulação de vida e de amor que perpassa as Pessoas divinas.
O fato
primordial do chamado dos seres à existência revela o mistério de um querer, de
um desígnio, de uma iniciativa divina, que implica o voltar-se de Deus para as
suas criaturas para enriquecê-las com o dom da existência, manifestação do seu
amor benevolente. Mas isso também esclarece que cada ser criado não é absoluto
nem autosuficiente, não estando pois em condições de dar a existência a si
próprio.
10
1.2.
O homem feito “à imagem de Deus”
Entre as
criaturas existentes neste mundo, emerge o homem, expressão singular do ato
criador divino. Ainda que retirado da terra, o homem não é um ser puramente
material. Com uma intervenção especial, Deus o torna um “ser vivo” (Gen. 2, 7),
formando-o à “sua imagem e semelhança” (Gen. 1,26).
Lê-se no livro do Gênesis: “E Deus disse: Façamos o homem
à nossa imagem, à nossa semelhança... Deus criou o homem à sua imagem, à imagem
de Deus o criou; macho e fêmea os criou (Gen. 1,26-27).
Então o Senhor plasmou o homem com pó do solo e soprou
mas suas narinas um hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivo” (Gen. 2-7).
Desde os primeiros capítulos, a Bíblia descreve o homem
numa perpectiva teológica, ou melhor ainda, teocêntrica. Cada homem a seu modo,
participa da “imagem de Deus”, único e incomparável exemplar de inesgotável
perfeição. Ele não a possui em plenitude, mas um germe que tende a crescer em
proporção ao dom recebido e à resposta ao dinamismo de desenvolvimento do mesmo
dom, que atingirá sua máxima perfeição na glória final. Por essa sua
participação na “imagem de Deus”, o homem constitui-se como pessoa inteligente
e responsável de suas ações, diferente de todos os outros seres e capaz de
construir-se num horizonte de liberdade e de abertura a Deus, aos seus
semelhantes e ao mundo material.
1.2.1. Criatura de
Deus
A categoria bíblica da “imagem de Deus”, aplicada ao
homem e a ele apenas, focaliza, antes de tudo, a origem divina da vocação
humana e a radical dependência que a pessoa humana tem de Deus. Em outras
palavras, essa evidencia sua condição de criatura.
A idéia de “imagem”não diz apenas que o homem, não tendo
em si mesmo a origem da própria existência e não bastando a si mesmo, é finito,
limitado e que, portanto, deve reconhecer sua dependência de Deus. Essa
evidencia também que o homem goza de uma privilegiada relação com Deus, porque
a sua realidade de “imagem” põe-no em condições de ser sinal e reflexo, ainda
que imperfeito, da grandeza, potência e bondade divinas.
A expressão “imagem de Deus” explicita que a dependência
do homem de Deus não é momentânea, isto é, ligada apenas ao ato criador, mas
reveste toda a existência. De fato, a imagem é relativa àquele do qual é
reflexo de modo contínuo. Sem exemplar, não existe a imagem e essa sua relação
e dependência não é algo de extrínseco ao ser humano, mas representa a
realidade mais profunda e a própria perfeição. Como a figura projetada sobre um
espelho depende do original, assim o homem recebe consistência e significado da
sua permanente relação de dependência de Deus, de quem é “imagem”.
Segundo a narrativa do Gênesis, o homem foi idealizado,
desejado e chamado à existência para cumprir o papel de “imagem de Deus”.
Tal papel não é uma forma acidental que se acrescente ou
seja imposta de maneira externa à
substância humana, mas é o modo de ser e de comportar-se próprio da pessoa que
tem Deus como ponto de referência e destino final.
Além de seu peculiar relacionamento de criatura com Deus,
o homem tem uma posição no universo, uma dignidade e funções que o caracterizam
e o distinguem de todos os outros seres. O homem participa, ao mesmo tempo, da
natureza dos seres inferiores (= “pó da terra”) e da natureza de Deus (=
“hálito da vida”: Gen. 2,7).
Por ser feito à “imagem de Deus”, o homem possui bens e
cultiva aspirações que os outros seres não possuem e não cultivam. Quem
desrespeita o homem, desrespeita a Deus, de quem o homem é imagem.
Como “imagem de Deus”, a criatura tem a obrigação de
comportar-se em harmonia com essa sua dignidade.
1.2.2. Interlocutor
de Deus
No concerto da criação, o homem é o único ser que tem a
capacidade de manter um relacionamento dialoga com Deus. No mesmo momento em que Deus com seu “sopro
vital” constitui o homem em seu próprio ser, infunde-lhe o desejo ardente do
diálogo e do encontro com Ele. Depois de tê-lo criado “à sua imagem”, Deus não
abandona o homem como se não estivesse mais interessado em seu futuro. Pelo
contrário, Deus fala com ele, dá-lhe a possibilidade e a capacidade de
conhecê-lo, entretém-se familiarmente com ele, manifesta-lhe a sua vontade. O
diálogo de Deus com o homem inicia-se no primeiro instante da criação de Adão,
no jardim do Éden. E não terá mais fim. Enquanto Deus comanda as outras
criaturas de modo impessoal, ao homem Ele se dirige como pessoa livre e espera
uma resposta (cf. Gen. 2, 16-17; Sir. 17, 1-11).
Portanto, o homem não é uma realidade casual.
É um ser chamado a cultivar a “imagem de Deus”que é ele.
Deus, após tê-lo criado, manifesta-lhe suas propostas de diversas maneiras e o
estimula a acolher os seus dons.
Instaura-se
assim um diálogo em que Deus
chama e o homem é solicitado a responder. A vocação evoca esse diálogo não
isento de dificuldades e incertezas, de adesões e resistências, porque o homem
pode condicionar ou também opor-se às iniciativas gratuitas com as quais
empenha-se em colaborar com ele, para ajudá-lo a tornar-se o que ainda não é.
Apesar dos obstáculos e das resistências do homem, Deus persiste em envolvê-lo
no seu desígnio de amor.
O homem
deve convencer-se de que valoriza sua existência à medida em que vive sua
relação com Deus, numa atitude igual à da relação entre um pai e um filho.
1.2.3. Aberto aos
seus semelhantes
Um outro dado que brota da descrição simbólica dos
primeiros capítulos do Gênesis é que o homem é, por natureza, um ser social.
Isso o leva a descobrir em si mesmo uma inegável aspiração de comunicar-se com
os outros homens. A complementariedade e a interdependência especificam seu
modo de ser e de viver. O caminho da sociabilidade é aquele que o homem deve percorrer,
se quer se realizar.
Isso se deduz do fato de que Deus não criou o homem como
indivíduo independente, mas como pessoa, isto é, como sujeito que é, ao mesmo
tempo, princípio, centro e fim de relações. Desde sua criação, não quer que o
homem permaneça só. Ao seu lado, pôs uma ajuda que lhe fosse semelhante (cf.
Gen. 2,18), para que através da mútua colaboração o homem e a mulher, cada um a
seu modo, contribuíssem para a própria complementação e o próprio
amadurecimento.
A união do homem e da mulher representa a primeira forma
terrena de comunhão de pessoas. Dessa deriva e nela se inspira, dentro de
certos limites, toda forma de vida em sociedade, atenta a salvaguardar uma
livre e fecunda troca de relações entre as pessoas, baseada não na prepotência
e na força, mas no amor. Para exprimir a aliança estabelecida com o povo de
Israel, e o próprio Deus evoca o simbolismo das núpcias (cf. Os. 2,16s. 21s.; Jer.
2,2.20; 31,3; Ez. 16, 1-43. 59-63).
Relativo
por constituição, o homem percebe que sua progressiva realização depende de um
contínuo dar e receber. Seu crescimento não pode estar separado daquele dos
outros homens. Portanto, os homens devem empenhar-se, juntos, em colaborar,
para que todas as pessoas e as comunidades cresçam em humanidade, visto que
toda vocação, mesmo sendo pessoal, guarda em si mesma uma exigência
comunitária.
1.2.4. Artífice do
seu destino
O homem é
uma criatura sociável a quem Deus faz suas propostas e de quem espera uma
resposta. Nesse contexto de chamado e de resposta, está o discurso das livres
opções do homem, das responsabilidade que dela brotam e da sua vocação para
construir o próprio destino.
O dom da
existência, que Deus deu ao homem, não é uma realidade pronta e acabada que
deve ser acolhida e conservada passivamente. É um projeto que o homem é
convidado a receber, potencializar e completar com a contribuição de seu
empenho e de suas firmes decisões para que se realize como homem, cultivando
seus dotes e partilhá-los com os outros, em espírito de autêntica fraternidade.
Junto com o dever de encaminhar-se em direção a sua
plenitude, o homem tem também a obrigação de procurar por si mesmo os caminhos
para conseguí-los. Não se trata de inventá-los, mas de descobrí-los através da
leitura dos impulsos internos e dos acontecimentos com os quais Deus acompanha
o homem na integração da própria iniciativa com a divina.
O tempo
que o homem tem à sua disposição sobre a terra é um tempo de empenho e de
responsabilidade. Um tempo em que ele prepara o que quer ser, com escolhas que
respeitem sua dignidade de homem e as finalidades para as quais foi criado, sem
esconder ou estragar os dons que Deus lhe concedeu.
Infelizmente, não é sempre assim. Criado para viver unido
a Deus e a dialogar com Ele, o homem pode eximir-se de aceitar esse destino.
Não por acaso, as primeiras palavras que Deus dirige ao homem assumem a forma
de uma proibição que põe à prova o exercício da liberdade humana: “Tu poderás
comer de todas as árvores do jardim, mas da árvore do conhecimento do bem e do
mal não deves, comer, porque, quando dela comeres, certamente morrerás”(Gen.
2,16-17).
A proibição e as sanções contidas nesse texto das
Escrituras mostram que Deus considera o homem capaz de responder “sim” ou “não”
aos seus mandamentos e que suas respostas trazem conseqüências positivas ou
negativas para o presente e o futuro de sua existência.
É verdade, porém, que mesmo quando o homem se mostra
surdo às ordens e aos convites de Deus e se afasta d’Ele, recusando-se a
escutá-Lo, Deus continua a oferecer-lhe sua amizade, confirmando sua
disponibilidade em retomar o diálogo interrompido pela criatura, para que esta
se encontre e dê o melhor de si mesma na atuação do desígnio divino, do qual
depende a construção do próprio destino temporal e eterno.
1.2.5. Colaborador de Deus
Logo que
são criados, homem e mulher recebem a missão de comunicar a vida com o objetivo
de povoar a terra, dominá-la (cf. Gen. 1, 26-28) e transformá-la em uma casa
para seus filhos. Todas as outras criaturas a eles estão sujeitas (cf. Gen.
1,28; 9,7). Isso leva o salmista a perguntar-se “que é o homem para que dele Tu
te lembres? Contudo Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste de
honra: a ele deste poder sobre as obras de tuas mãos, tudo colocaste sob seus
pés” (Salmo 8, 5-7).
O homem
existe para desenvolver uma função específica no mundo. Sua vocação é uma
vocação histórica. Ele é chamado à existência para que tome a direção do mundo,
colocando-o a serviço das exigências da vida humana e conduzindo-o à plenitude
de sua evolução, consciente de agir como colaborador e como executor das
intenções divinas sobre a criação. E da criação o homem pode dispor como
verdadeiro senhor (cf. Gen. 1,28; Sab. 2,23), contando que respeite o fim
último da mesma criação e que não diz respeito à sua própria exaltação, mas à
glorificação de Deus.
1.2.6.Coroamento da
criação
Por causa de sua semelhança com Deus, o homem aparece
como o “contro e o vértice”(GS. 14) do mundo material. Ele é chamado à
existência depois das outras coisas. Em sua criação, há uma ação direta e
especial de Deus. Se antes de seu aparecimento o mundo era apenas “bom” (Gen.
1, 25), após ele, o mundo torna-se “muito bom” (Gen. 1,31).
A “imagem de Deus” esculpida no homem faz dele,
verdadeiramente, o coroamento de toda a obra criadora, o ponto mais alto em que
brilha mais viva a presença e o poder de Deus. É verdade que a “imagem de Deus”
foi deturpada pelo pecado e, portanto, também a criação “foi subemetida à
vaidade” ( Rom. 8,20). Todavia, em sua condição de espírito encarnado, inserido
no mundo, o homem, se não se fecha no próprio egoísmo mas se se deixa penetrar
pelo dinamismo do amor divino, readquire a capacidade de “prolongar a obra do
Criador”e de dar “uma contribuição pessoal” à realização do plano providencial
de Deus na história (GS. 34). Ele colabora assim “com a própria ação para
completar a divina criação”(GS. 67), transformando-a numa habitação do homem
que corresponda ao desígnio que Deus tenha quando lhe imprimiu seu impulso
criador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário