sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O dom é o segredo da vida confiado ao ser humano

A palavra dom e o conceito de gratuito foram banidos da esfera pública e da educação nas suas múltiplas instâncias formais e informais. Pouco a pouco vai-se esbatendo a memória de que o sentido da vida humana não se esgota no que é produzido, categorizá-vel e negociável. Perde-se a memória de que também há realidades gratuitas e não manipuláveis. Não é certamente uma postura iné-dita na condição humana. Parece, bem ao contrário, uma tentação constante dos humanos de todos os tempos. Não nos fala a Sagrada Escritura, desde as primeiras páginas, das dramáticas roturas da harmonia no mundo quando o ser humano se assume como senhor e proprietário dos bens que o rodeiam, esquecendo que não lhe pertencem, que são puro dom – como a sua própria vida também o é – e que o que é dado não é para possuir, é para acolher?
No jardim do Édem !
No jardim do Éden, Adão e Eva não conseguem perceber que a atitude diante do dom – “Dou-vos todas as ervas que dão semente… e todas as árvores que dão fruto …” (Gn 1,29) – não é a posse, mas sim o acolhimento. Por isso, pegam no que não lhes é dado.
Sarai e Abrão
Noutro cenário encontramos Sarai e Abrão. Interessa-nos, concretamente, a provação que afecta a relação entre o pai e o filho Isaac (Gn 22). Não se passe, todavia, sob silêncio um detalhe curioso da relação do casal (Gn 17). Na língua hebraica, Sarai significa “minha princesa”. O acento é aqui posto no pronome possessivo minha; Sarai é propriedade de Abrão (este receberá o nome novo da aliança de Deus com Abrão e toda a sua descendência: Abraão). Nas intrigas e peripécias do casal, evidencia-se Sarai a sacrificar a sua identidade em favor do marido. Felizmente, o Senhor Yhaveh vai intervir. No culminar da história do casal, um filho lhes é dado e, curioso e pouco notado, o Senhor Yhaveh dá novo nome a Sarai, oferecendo ao casal a possibilidade de se abrirem à verdadeira relação, àquela que se fundamenta não no ter e possuir, mas no ser outro com o outro, no respeito das inegociáveis identidades. Doravante, não se chamará mais Sarai, minha princesa, mas simplesmente, Sara, princesa.
Sara concebe um filho na sua velhice. De que modo Abraão acolhe o dom que o Senhor lhes faz? Como um bem que é doravante sua propriedade, não vendo nele o “filho da promessa”, mas somente o “filho do seu desejo”? A provação a que Deus submete Abraão vai obrigá-lo a decidir. E Abraão decide, dispondo-se a devolver o dom que lhe havia sido dado. Dispõe-se, assim, a oferecer a Deus o sacrifício do filho desejado; oferecer a Deus o seu bem mais precioso, pois não o havia recebido como propriedade. A disposi-ção de Abraão agrada ao Senhor. Então, uma segunda vez, Abraão vai acolher o filho Isaac das mãos do Senhor, agora como provado filho da promessa e não como filho do seu desejo de descendência.
Os dois irmãos, Caim e Abel
Um outro quadro bíblico apresenta dois irmãos, Caim e Abel, no episódio das oferendas que fazem ao Senhor Yhaveh (Gn 4,1-5). Este episódio diz que o que caracteriza o dom não é o ter, é o ser; diz que o dom é a essência e a fonte da vida e diz como este entendimento é decisivo na construção da identidade de cada ser humano. Mais uma vez, a intriga vai desenvolver-se à volta dos pronomes possessivos. A leitura feita pela psicanalista francesa Marie Balmary, a partir do texto escrito em hebraico, faz emergir os possessivos como determinantes na interpretação deste episódio.
Caim ofereceu produtos da terra; Abel ofereceu as primícias do seu rebanho.
Abel deu as primícias do seu rebanho e a sua oferta foi agradá-vel ao Senhor. Caim deu os frutos da terra e Deus não aceitou a sua oferta, porque Caim deu o que não era seu. Ele não estava presente na sua oferta:não se deu com aquilo que deu. Se Deus recebesse os frutos da terra isso significaria que Caim não contava para Deus; equivaleria a aceitar a não existência de Caim, visto ele não estar no dom, não estar presente no presente. Por isso, Deus recusa a oferta que ele faz. Não é dom seu; é da terra. O seu dom é um “dom vazio”. Esta passagem tem, muitas vezes, provocado mal-estar por parecer revelar um Deus caprichoso, que descrimina e ofende Caim. Passa-se precisamente o contrário. Deus respeita Caim e preocupa-se com ele. É por essa razão que recusa a oferta, ou seja, recusa a inexistência de Caim, o presente sem presença, o dom sem relação, o ritual sem vida, o objecto sem sujeito, a “coisa” sem “Eu”. O Senhor quer que Caim exista, se descubra a si mesmo; tome consciência da sua existência e da sua identidade, para si e para a relação com o próprio Deus.
Estes quadros bíblicos fazem sair o ser humano, com pedagó-gica sabedoria, da esfera das coisas e dos objectos. Deles brota uma lógica que o conduz para lá do mero horizonte da posse e aponta para uma dimensão oblativa da vida. Dimensão oblativa que entra na própria definição da vida: a vida é puro dom. Não será este o seu segredo? Na raiz da vida está o dom, o gratuito, como constitutivo do ser. Isto leva a que se possa afirmar o dom como um transcendental, porque ele é a essência das coisas e dos seres.
Por onde anda o dom? O que tem feito o ser humano e o que fazemos nós, hoje, desta possibilidade maravilhosa de outro modo de ser do que ter?Que abismos temos de enfrentar, que provações precisamos de atravessar, que despojamentos serão necessários para se poder ir mais além do que o que se tem?
Um segredo esconde-se no cosmos e em cada ser que o povoa. Um segredo de gratuidade que nos confia o dom como a chave da vida e ajuda a aceder a um sentido da vida em que esta se compreende como puro dom. Esta é uma bela e boa notícia de alcance universal. Para a acolher e entender não é necessário um elevado quociente intelectual, ou uma específica formação científica e técnica. Não se trata de uma notícia para um grupo de privilegiados ou iluminados. Dirige-se a todos os seres humanos e todos a podem compreender porque todo o ser humano “está feito para o dom, e é no dom que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência” (Caritas in Veritate 34).
Então, por que é que temos tanta dificuldade em compreender e em viver a vida como dom? A elaboração de uma proposta coerente e pertinente de antropologia cristã para o mundo de hoje exige que, como preliminar metodológico, se procurem respostas para estas questões.
Talvez a vida dos três pastorinhos de Aljustrel e os acontecimentos singulares que a marcaram possam fornecer ao mundo de hoje pistas para esta concepção mais essencial da vida, em que viver implica oferecer a vida e, maravilha das maravilhas, oferecer a vida não significa perder a vida ou morrer. Significa, ao contrário, viver a vida autêntica, a “vida boa”, aquela vida que não depende das cotações do mercado, das ameaças de cortes no rating, do temor das falências e das bancarrotas. A “vida boa” não se vende e não se compra; ela escapa radicalmente à lógica financeira e económica, porque o que a define não é o ter mas o ser, não é o possuir, mas o acolher e o dar gratuitamente “lugar espaçoso e feliz” ao essencial.
A vida dos pastorinhos não foi uma “boa vida”, mas foi, sem sombra de dúvida, uma “vida boa”. Tão boa que eles a assumiram como uma doação permanente.Jogaram o grande jogo da vida: dar-se, dar tudo o que se é, sem nunca perder. Eis o grande segredo de Fátima que os pastorinhos aprenderam com Maria, a Mãe de Jesus, que, por seu lado, havia aprendido com o seu querido Filho: entregar-se não é uma perda de si; é um encontrar-se com o outro por causa de um amor mais forte e mais precioso do que a própria vida.
Maria disse sim a Deus. Os pastorinhos juntam-se a Maria e com ela dizem: sim, Senhor, nós também queremos oferecer-te a nossa vida.
Paz e Bem !

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