Há mais de quarenta anos estou
diariamente envolvido com a vida da Igreja Católica Romana. Durante este
período escutei centenas de vezes a afirmação de que a Igreja não é uma
democracia. Geralmente escuto este tipo de afirmação quando se quer justificar
os autoritarismos praticados por eclesiásticos ou por gestores de instituições
eclesiásticas. A última vez que escutei tal afirmação foi há poucos dias atrás.
Um gestor de uma instituição ligada à Igreja Católica, querendo justificar
atitudes pouco evangélicas e pouco transparentes dessa mesma instituição
saiu-se com esta afirmação: "Meu caro, você sabe que a Igreja Católica não é
uma democracia”.
Diante da resposta evasiva deste gestor
tive que fazer alguns esclarecimentos. Antes de tudo disse para ele que,
realmente, a Igreja não é uma democracia no sentido que estamos acostumados a
entender esse termo. No âmbito político atual entende-se por democracia a
vontade da maioria da população de um país ou de um continente, manifestada
através do voto, de um plebiscito ou mesmo de um referendum. Por democracia, no
sentido comum do termo, entende-se a obrigação que os governantes e os
políticos têm de agir com transparência, respeitando a autonomia dos três
poderes (legislativo, executivo e judiciário) e respeitando a vontade da
maioria manifestada em algumas ocasiões. Por democracia entende-se ainda uma
série de direitos e de deveres individuais e sociais garantidos pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e pelas Constituições dos diversos países.
Sabemos, porém, que nem sempre a
vontade da maioria é o melhor para a humanidade e para os vários povos e
nações. A história tem demonstrado que, muitas vezes, as escolhas feitas pela
maioria são equivocadas e terminam por se voltar contra as próprias pessoas.
Por esse motivo vem se firmando cada vez mais a exigência de novas formas de
democracia como, por exemplo, a democracia participativa, através da qual a
população de uma determinada região ou país manifesta, por meio de determinados
organismos, a sua vontade e interfere diretamente na realização das políticas
públicas. Nesse processo são respeitados não só a vontade da maioria, mas
também o desejo e os direitos de pequenos grupos e minorias, os quais quase
sempre são esquecidos nos processos e mecanismos de decisão que consideram
apenas a vontade da maioria.
Ora, considerando esses aspectos de uma
democracia representativa, pode-se dizer com tranquilidade que a Igreja não
pode e nem deve ser uma democracia. Ela, pelo contrário, é muito mais do que
isso. A Igreja é uma koinoníae vai, enquanto tal, muito mais além
de uma pura e simples democracia. Ettore Franco, meu professor na Pontifícia
Faculdade da Itália Meridional (Nápoles – Itália) no seu livroComunione
e partecipazione: la koinônia nell’epistolario paolino(Bréscia:
Morcelliana, 1986) estudou a fundo essa questão.
Para Franco akoinoníabíblica
é a salvação escatológica oferecida pelo Pai, através da ação do Filho, no
dinamismo do Espírito e que se concretiza em um determinado momento da nossa
história (1Jo 1,1-3). Enquanto tal, a koinonía implica uma resposta decomunhãoe
departicipaçãodos cristãos e das cristãs, acolhendo o dom
salvífico. Isso significa que aqueles e aquelas que crêem devem se preocupar
com o bem comum e com o bem dos demais. Essa atitude comporta
necessariamenterelações horizontaisentre as pessoas, de modo
que ninguém seja tratado de maneira inferior, discriminadora, preconceituosa e
excludente (1Cor 10,14-22).
Além dos relacionamentos horizontais, a
koinonía comporta apartilha dos bensentre as pessoas. Essa
partilha dos bens expressa asolidariedadeque deve existir
entre aqueles e aquelas que acreditam em Cristo e destes para com todas as
pessoas necessitadas. A solidariedade, por sua vez, é sinal visível da graça de
Deus que é a comunhão com Cristo (2Cor 8 – 9). A koinonía, portanto, é
expressão de um relacionamento entre os cristãos e entre as cristãs que não
admite formas de distinção ou de hierarquia que sejam discriminatórias ou
excludentes, nas quais algumas pessoas ou até multidões sejam consideradas
inferiores e, por isso mesmo, excluídas de determinados espaços. A koinonía
exige, enquanto tal, que se respeite o direito de toda pessoa batizada a ter
voz e vez na comunidade cristã. Esse direito não nasce do pertencimento a uma
determinada hierarquia ou ao fato de ter tido oportunidade de uma formação
acadêmica (ter feito teologia, por exemplo), mas da inserção efetiva no Corpo
de Cristo que se dá através do batismo (Rm 6,3-5). O batismo nos faz todos
irmãos e irmãs uns dos outros e constitui cada pessoa no direito e no dever de
participar ativamente da vida da Igreja, segundo a graça recebida do Espírito
através desse mesmo batismo (Ef 4,4-16).
Consequentemente naIgreja-koinoníaas
pessoas batizadas são todas, sem exceção, irmãs umas das outras (Mt 23,8) e,
por isso, não há lugar para autoritarismos e nem para uma hierarquia
dominadora, impositiva e repressora. A solução das questões se dá através do
diálogo fecundo entre as diversas pessoas que ocupam funções diferentes,
exercem ministérios particulares e prestam vários serviços à comunidade. Tudo
de acordo com os dons recebidos do Espírito. Na comunidade cristã que tem como
referência a koinonía bíblica não existem mestres, não existem senhores, não
existem "pais”. Somente Cristo é o Mestre e Senhor e somente Deus é o Pai de
todos e de todas (Mt 23,8-10).
Na Igreja não podem, pois, existir
eminências e excelências; pessoas mais importantes e outras menos importantes;
pessoas incensadas e outras descartadas ou colocadas em segundo plano. Certos
títulos e certas honras atribuídas a determinadas pessoas são resquícios de uma
herança do passado, quando a Igreja passou a imitar as tiranias e os tiranos do
mundo (Mc 10,42), e que contradizem profundamente o Evangelho. São expressão de
uma Igreja que, apesar dos cinquenta anos do Vaticano II ainda não se purificou
totalmente, como pediu esse Concílio, mas ainda continua buscando glórias e
afastada do seu Fundador pobre, humilde, sofredor e servidor (LG, 8).
Portanto, realmente a Igreja não é e
não pode ser uma democracia no sentido que entendemos atualmente este vocábulo.
Isso seria reduzi-la drasticamente. Porém, como vimos antes, a Igreja é muito
mais do que isso; é uma koinonía e é, enquanto tal, uma comunidade de irmãs e
de irmãs na qual não podem ser aceitas de forma alguma as desigualdades, as
discriminações, o exercício autoritário do poder etc. Temos ainda um longo
caminho a percorrer e somos desafiados a avançar com coragem e determinação na
direção da utopia do Reino de Deus. Não podemos e não devemos desistir do sonho
de uma Igreja na qual "a totalidade dos fiéis, que receberam a unção que vem do
Espírito” (LG, 12), será plenamente respeitada na sua diversidade, superando
assim a tentação das hierarquizações discriminantes e excludentes (At 10,
34-35; Gl 3,28-29). Foi com base nakoinoníaque, nos
primeiros séculos da Igreja, as comunidades escolhiam seus ministros e demitiam
as autoridades eclesiásticas indignas e corruptas. Mas disso falaremos em outra
ocasião.
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